sexta-feira, 26 de outubro de 2007

VEJA A RIQUEZA DA LAMA


Ostras
Riqueza na lama

Coletores do molusco nos manguezais de Cananéia, no litoral paulista, se unem em cooperativa e aumentam renda com a depuração e a venda sem intermediários
Por Verena Glass/Fotos Ernesto de Souza
Zenildo Mateus aproveita a vazante para colher as ostras escondidas na lama
Conhecidos como Mar de Dentro, os escuros canais de água salobra que se estendem a perder de vista por entre as ilhas de Cananéia, Comprida e do Cardoso, no litoral sul paulista, são o resultado do encontro das águas salgadas do mar com os riachos que brotam no coração da Mata Atlântica, que ainda domina grande parte dessa região. Acompanhando o ritmo das marés, esses canais banham as enormes raízes, salientes como palafitas, de pequenas árvores retorcidas que crescem às suas margens e que são parte de um dos mais belos e ricos ecossistemas do país: os manguezais que se desenvolvem no litoral brasileiro, e que, no caso da região de Cananéia, ocorrem numa faixa entre a mata e parte da costa das três ilhas.
No decorrer dos séculos, o acúmulo de massa orgânica proveniente das florestas e do próprio manguezal formou uma lama preta e fecunda que se depositou no fundo dos canais e em suas margens, servindo de substrato para o desenvolvimento do mangue e de uma vasta fauna de crustáceos e moluscos. São nesses manguezais, mais especificamente nas raízes das árvores, que se fixam as cobiçadas ostras brasileiras (Crassostrea brasiliana), moluscos muito apreciados nos bares e restaurantes do litoral e da capital.É cedo. Os primeiros raios do sol banham as ilhas de cores alaranjadas e douradas, ressaltando a beleza da paisagem.
Embarcando em pequenas canoas, famílias inteiras de comunidades locais se preparam para mais um dia de trabalho na extração das ostras. Com a maré vazante, as raízes do mangue ficam expostas, e é nesse período que a coleta dos moluscos se torna possível. Afundados até as canelas na lama, os catadores de ostras caminham com dificuldade pelo manguezal, as costas curvas e o olhar treinado detectando os moluscos, que são retirados das raízes do mangue com pequenas foices.
Quem tem o que levar carrega marmita. Quem não tem come somente quando a cheia da maré levar os canais a invadir completamente o mangue e impossibilitar a continuidade do trabalho. Depois das primeiras horas da manhã, o sol já não é dourado e suave; é ardido. Mas pior que sol forte, fome e dor nas costas é o ataque impiedoso dos borrachudos, do "polvinha" e das mutucas, cujas picadas doloridas podem levar ao desespero. E, depois de tudo isso, vem a amarga recompensa de cerca de 80 centavos a dúzia da ostra, paga pelos atravessadores que posteriormente revendem essa mesma dúzia em São Paulo e na Baixada Santista por valores que variam de 7 a 12 reais. A baixa remuneração e o aumento do custo de vida têm levado os extratores de Cananéia a redobrar seus esforços, um coletor chegando a retirar até 1.000 dúzias de ostra do mangue por semana. "Não sei se a ostra está acabando. Só sei que tinha muito mais quando comecei a catar, 20 anos atrás", diz, pensativo, o extrator Antônio Mateus, da comunidade de Itapitangui. Como ele, existem hoje cerca de 120 coletores de ostra, pertencentes a 20 das comunidades mais antigas da região de Cananéia, que sobrevivem exclusivamente dessa atividade.
Em si, a extração não é proibida, mas poucos revendedores se preocupam com as condições de sanidade do produto que chega à mesa do consumidor; ou seja, em sua maioria, as vendas são clandestinas. Esse fator, aliado à preocupação com o impacto ambiental do extrativismo e com a exploração econômica sofrida pelas comunidades, levou um grupo de técnicos da Fundação Florestal (da Secretaria Estadual do Meio Ambiente) e do Instituto de Pesca (da Secretaria Estadual da Agricultura), ligados à organização não-governamental Gaia Ambiental, a iniciar um trabalho de organização das comunidades de coletores, com o objetivo de criar um projeto de exploração, beneficiamento e distribuição da ostra.Em 1994, o oceanógrafo Marcos Campolim, então técnico da Fundação Florestal e hoje na direção do Parque Estadual da Ilha do Cardoso, começou a fazer um levantamento das comunidades extratoras, visitando uma a uma para expor um projeto que, de início, previa apenas um trabalho organizado de engorda dos moluscos. Nos anos seguintes, a proposta evoluiu para a formação de uma cooperativa, cujos membros participariam da construção de uma estação depuradora, fariam a engorda e se disporiam a seguir certas normas no processo de extração.
Segundo a legislação, só é permitida a coleta de moluscos maiores de 5 e menores de 10 centímetros, e entre novembro e fevereiro, período de pico da reprodução, a extração é proibida. Hoje, a Cooperostra - Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananéia congrega, efetivamente, 43 associados de dez comunidades tradicionais; está com a depuradora pronta e já iniciou a busca de mercado, o que deve elevar significativamente o rendimento dos cooperados com a eliminação dos atravessadores.
Criação suspensaAnimais menores engordam sobre estacas
Os moluscos se desenvolvem nas raízes do mangue
O trabalho de convencimento dos catadores de ostras para a formação da cooperativa foi demorado. "Quando Campolim chegou aqui pela primeira vez, eu fiquei muito desconfiado. Na época, a gente estava sofrendo pressão muito grande de um grupo de grileiros que tentavam tomar as nossas terras, e quem podia garantir que aquele moço não estava enganando a gente?", conta Armando Pereira Davi, que mora na comunidade isolada do Retiro, cerca de 40 minutos de voadeira de Cananéia e onde só se chega de barco, e apenas no período de cheia do manguezal, quando a subida das águas torna navegável o pequeno rio que serve de acesso ao local. Criada há cerca de 300 anos, Retiro congrega hoje dez famílias, das quais quatro são associadas à Cooperostra. A casa onde seu Davi vive com a esposa, dona Dirce, e os quatro filhos, fica em um terreno que vem passando de pai para filho há mais de um século, mas até hoje ele não tem a escritura da área. Sozinha no meio de uma grande clareira, a casa parece perdida no meio do mato, já que no Retiro as famílias vivem isoladas umas das outras, o que realmente não facilita um trabalho conjunto, explica dona Dirce.
"Aqui só tem uma escolinha até a quarta série, não tem atendimento de saúde, plantar é difícil porque não tem como vender... Mas a gente não quer outra vida", diz ela, que se orgulha da família unida que a cerca. "Meus filhos não quiseram ir para Cananéia para estudar, e eu achei bom, porque lá tem muita droga. A vida deles vai ser aqui mesmo, e é com o pai que eles vão aprender as coisas da vida."




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